Publicado por Peter Rodriguez

O livro de Daniel – Capítulo 2

Parte 1: Um sonho profético

É ele quem muda os tempos e os períodos. Nos símbolos que Daniel viu em sua visão, Daniel identificou reinos destinados a governar o mundo — cada um com seu tempo ou período de domínio designado —, um sucedendo o outro até o momento em que Deus faria com que seu próprio reino governasse toda a terra para sempre. É por isso que, logo após receber essa visão, Daniel louvou a Deus fazendo menção ao Seu poder de mudar os tempos e os períodos.

Essa mudança de tempos ou períodos está intimamente relacionada à remoção e ao erguimento de poderes políticos. Deus muda os tempos ao pôr fim ao período de domínio de uma nação e fazer com que outra nação suba ao poder, trazendo com isso um outro tempo. “‘Senhor, restaurarás tu neste tempo o reinado a Israel? E ele lhes disse: ‘Não vos compete saber os tempos ou períodos que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder'”. (Atos 1:6-7)

“A afirmação [ele muda os tempos e os períodos] é feita, sem dúvida, em vista das revoluções imperiais que Daniel agora viu, a partir do significado do sonho, que deveriam ocorrer sob a direção divina. Prevendo agora essas vastas mudanças denotadas por diferentes partes da imagem (Daniel 2:36-45), estendendo-se até tempos mui distantes, Daniel foi levado a atribuir a Deus o controle sobre ‘todas’ as revoluções que ocorrem na terra. Não há diferença essencial entre as palavras ‘tempos’ e ‘períodos’. As palavras em caldeu denotam períodos prescritos ou apontados; e a ideia de tempos ‘apontados, estabelecidos, determinados’ está presente em ambas. Os tempos e períodos não estão sob o controle do acaso, mas são delimitados por leis estabelecidas; […]”. (Albert Barnes’ Notes on the Whole Bible, Daniel 2:21)

Quem remove reis e ergue reis. A razão pela qual Deus põe fim ao domínio de um império ou permite que ele permaneça é trazida ao nosso conhecimento pelas seguintes palavras: “O rei que é justo para com os fracos, o seu trono será estabelecido para sempre.” (Provérbios 29:14) “[…] um trono se firma pela retidão.” (Provérbios 16:12) “Portanto, ó rei, aceite o meu conselho, e rasga fora o teu pecado, praticando a retidão, e rasga fora a tua iniquidade, usando de misericórdia com os pobres, para que haja um prolongamento da tua prosperidade.” (Daniel 4:27) “[Quando o coração do rei] se tornou arrogante e endurecido pelo orgulho, ele foi deposto de seu trono real e despojado de sua glória.” (Daniel 5:20) “Amor e verdade preservam um rei, e com amor mantém ele o seu trono.” (Provérbios 20:28).

Deus confiou o mundo aos reis que Daniel viu em sua visão.

Cada um desses governantes deveria cuidar da terra e de seus habitantes, como um administrador responsável, honrando o Deus do céu e andando no caminho do amor e da retidão. Infelizmente, eles não quiseram cumprir esse sagrado dever. É por isso que eles foram removidos e outros foram colocados em seu lugar, na esperança de que esses novos governantes governassem o mundo como Deus deseja: com amor, misericórdia e retidão.

Deus todo-poderoso reina supremo sobre todas as nações, e todos os governantes da terra pertencem a ele. Ele é Senhor sobre todos eles e Dono de todas as suas terras e posses. Se eles não se retratam e não se submetem à autoridade suprema de Deus, ele os remove e faz com que outros assumam seu lugar, pois “o Altíssimo governa no reino dos homens e o dá a quem quer” (Dn 4:17).

Ao mesmo tempo, Deus é cheio de misericórdia e lento para se irar, sempre dando aos reis da terra tempo e oportunidade para se arrependerem de seus maus caminhos. No entanto, quando eles se recusam a se arrepender e enchem sua medida de iniquidade, então é chegado o momento de serem destituídos do poder — “porque a nação e o reino que não te servirem perecerão; sim, essas nações serão totalmente destruídas”. (Isaías 9:12)


Parte 2: Sobre os quatro reinos

Você é esta cabeça de ouro. A cabeça de ouro representa o rei da Babilônia e, por extensão, o reino dos babilônios.

Nabucodonosor é Babilônia, e Babilônia é Nabucodonosor. Essa figura de linguagem, na qual um reino é representado pelo seu rei, ocorre com frequência na Bíblia e no Livro de Daniel.

Daniel dirá que após Nabucodonosor se erguerá “um outro reino” (a prata), seguido por “um terceiro reino” (o cobre) e, depois, “um quarto reino” (o ferro). Com base nisso, podemos ver que, para o próprio Daniel, o ouro representa o primeiro reino.

Ainda nesse capítulo, Daniel também dirá que o ferro representa um reino e, em seguida, dirá que esse mesmo metal representa um rei. Isso mostra que os termos “rei” e “reino” são aqui usados como tendo o mesmo significado.

Portanto, a cabeça de ouro, ao representar o rei da Babilônia, representa o reino dos babilônios.

E depois de você se erguerá outro reino. Tivessem os babilônios vivido de acordo com a luz que receberam por meio de Daniel e de outros homens piedosos que Deus colocou no meio deles, praticando o que é certo e submetendo-se ao Deus do céu, seu domínio sobre o mundo teria perdurado.

Ao longo do Livro de Daniel, testemunhamos a intervenção de Deus por meio de atos grandiosos na Babilônia, mesmo diante de reis e autoridades gentias. Mistérios do reino celestial foram revelados, e esforços foram feitos para a conversão de Nabucodonosor e seus súditos. Por fim, o orgulhoso rei babilônico curvou-se diante de Jeová, o Senhor dos reis, reconhecendo o poder e a grande autoridade do Deus do céu sobre todos os governantes. Ele reconheceu que todas as ações de Deus são verdadeiras e que todos os Seus caminhos são justos, levando-o a abençoar, louvar e glorificar o Deus que vive para sempre. “Mas você, Belsazar, neto dele, não se humilhou, embora soubesse de tudo isso. Pelo contrário, você se levantou contra o Senhor do céu. […] Deus contou os dias do seu reinado e pôs fim a ele. […] seu reino foi dividido e dado aos medos e persas.” (Daniel 5:22-23, 26, 28)

Com essa declaração, Daniel informa que os medos e persas sucederam os babilônios, tornando-se assim o reino representado pelo peito e braços de prata.

É importante enfatizar que, mesmo antes de destronar os babilônios e ascender ao domínio mundial, os medos e os persas estavam sob um e o mesmo governo:

  • Os medos e os persas se fundiram uns com os outros e, por causa dessa “co-fusão”, “os gregos regularmente falavam dos persas como sendo medos (οἱ Μῆδοι, τὰ Μηδικά)” (Cambridge Bible for Schools and Colleges).
  • No relato histórico do Primeiro Livro de Macabeus, é dito que o rei Dario III era “rei dos persas e dos medos” (1 Macabeus 1:1). Portanto, os medos e os persas tinham um único e mesmo rei. Eles eram um só reino, o reino de prata.
  • “[…] os persas e os medos eram povos da mesma raça e da mesma fé; […]” (J.B. Bury, A History of Greece).
  • Os medos e os persas tinham a mesma lei, “a lei dos medos e dos persas” (Dan. 6:15).
  • Os medos e os persas tinham o mesmo exército, “o exército da Pérsia e da Média”. (Ester 1:3) “… ele [Dario, o medo], com seu parente Ciro [o persa], pôs fim ao domínio dos babilônios, […]” (Flavius Josephus, The Antiquities of the Jews)
  • Daniel não diz que o reino foi dado somente aos medos, mas “aos medos e persas”. (Dn 5:28) “[…] os medos eram considerados no exterior como o povo que governava com os persas e ao lado deles”. (Keil and Delitzsch Biblical Commentary on the Old Testament)

Portanto, os medos e os persas governam juntos, como um único governo. Juntos, eles sucederam os babilônios, tornando-se assim o reino representado pelo peito e braços de prata.

O período dos babilônios acabou, e o tempo dos medo-persas chegou. Assim como seus predecessores, os medo-persas também passariam por um período de teste. Sua permanência como governantes do mundo dependia de sua adesão à retidão e submissão ao Deus do céu, o Governante supremo. Se eles se desviassem desse caminho, o mesmo Deus que tem o poder de mudar os tempos e os períodos os removeria do poder e colocaria outro povo para cuidar do mundo e pastorear seus habitantes.

[Um reino] mais terreno do que você. O reino dos medo-persas é representado na estátua colossal pelo peito e braços de prata. “A próxima dinastia é chamada de inferior, ou seja, mais próxima do chão אָרְעָא (ar’a), o que certamente é verdade no que diz respeito aos ombros em relação à cabeça.” (Pulpit Commentary)

Assim, cada um dos reinos posteriores a Nabucodonosor seria mais terreno (em oposição a celestial) do que seu antecessor, demostrando maior oposição à autoridade do Deus do céu e maior relutância em reconhecer que “o céu governa” (Daniel 4:26).

O cumprimento disso é uma realidade que podemos ver nos reinos seguintes, cada um dos quais se torna ainda mais baixo, mundano e corrupto do que seu antecessor. “A expressão [mais terreno] denotaria que houve um declínio geral ou degeneração no caráter dos monarcas e na condição geral do império.” (Albert Barnes’ Notes on the Whole Bible) “Ou seja, os persas, que não eram inferiores em dignidade, poder ou riquezas, mas eram piores em relação à ambição, crueldade e todo tipo de vício, mostrando que o mundo ficaria cada vez pior até que fosse restaurado por Cristo.” (Geneva Study Bible)

“É verdade que o caráter de Ciro é digno dos mais altos elogios, e que ele foi distinguido não apenas como um conquistador corajoso e bem-sucedido, mas como um governante civil ameno, capaz e íntegro. […] Mas ele foi sucedido por um louco, Cambises, e por uma raça de reis eminentes entre os príncipes pela insensatez e pelo crime.” (Albert Barnes’ Notes on the Whole Bible)

E chegou um momento em que a iniquidade dos medo-persas atingiu sua medida máxima, o que significava que Deus tinha que pôr um fim ao período de dominação deles. Sua iniquidade e desrespeito à lei de Deus chegaram a um ponto tão crítico que se tornou necessário o surgimento de outro reino para governar a terra em seu lugar: um terceiro reino — o qual também teria seu período de teste.

Um terceiro reino, o qual é o cobre. Como evidenciado pelo versículo que agora estamos analisando, os próprios materiais da estátua representam reinos. Perceba que Daniel diz que o próprio cobre é o terceiro reino: “um terceiro reino, o qual é o cobre” (Dn 2:39). A partir disso, temos: o primeiro reino, o qual é o ouro; o segundo reino, o qual é a prata; o terceiro reino, o qual é o cobre; o quarto reino, o qual é o ferro.

Além disso, no final deste capítulo, Daniel dirá que o reino de Deus “moerá […] todos estes reinos” e que isso é demonstrado pelo fato de que a pedra “moeu o ferro, o cobre, o barro, a prata e o ouro”. Observe que Daniel diz que as coisas que foram moídas eram reinos. Portanto, de acordo com o próprio profeta, esses materiais em si representam reinos.

E outro, um terceiro reino, o qual é o cobre, dominará sobre toda a terra. “Depois que Alexandre da Macedônia, o filho de Filipe, veio da terra de Quitim e derrotou Dario, o rei dos persas e dos medos, ele o sucedeu como rei, em acréscimo à sua posição como rei da Grécia. Ele se envolveu em muitas campanhas, capturou fortalezas e executou reis. Em seu avanço até os confins da terra, ele saqueou inúmeras nações.” (1 Macabeus 1:1-3)

Assim, o reinado dos medo-persas também passou e, em seu lugar, o Deus do céu ergueu o reino dos macedônios. O Senhor tomou a Alexandre da Macedônia pela mão direita, para subjugar as nações ante a sua face. Ele cingiu Alexandre, embora ele não O conhecesse.

O reino de cobre continuou de pé e manteve seu domínio sobre o mundo após a morte de Alexandre, pois o poder permaneceu nas mãos do mesmo povo. Os governantes que sucederam Alexandre em seu reino também eram macedônios. Portanto, “esse terceiro reino deve ser considerado como abrangendo não apenas Alexandre, mas também os príncipes macedônios que o sucederam”. (Joseph Benson’s Commentary on the Old and New Testaments)

Mas a maldade deles superou a dos medo-persas, e seus governantes “causaram muitos males na terra” (1 Macabeus 1:9). Consequentemente, Deus removeu os macedônios e deu o domínio do mundo a outro povo: “As armas da República, por vezes vencida em batalha, mas sempre vitoriosa na guerra, avançaram a passo rápido até o Eufrates, o Danúbio, o Reno e o oceano; e as imagens de ouro, prata ou bronze que pudessem servir para representar as nações ou seus reis, foram sucessivamente quebradas pela férrea monarquia de Roma.” (Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire [p. 512]).

Um quarto reino. Em Daniel 2:44, o profeta aponta um certo aspecto que distingue o reino de Deus dos reinos anteriores: “sua soberania jamais será deixada a outro povo”. Isso implica que, com a remoção de um reino e o erguimento de outro para governar em seu lugar, o domínio é tirado de um povo e dado a outro.

Ferro e cobre são metais diferentes. Portanto, o cobre representa um reino e povo, enquanto o ferro representa outro.

“O metal é diferente aqui e, consequentemente, da mesma forma, a nação também tem de ser diferente da anterior. Pois os quatro metais devem significar quatro nações diferentes; e como o ouro significava os babilônios, a prata os persas e o cobre os macedônios, então o ferro deve necessariamente denotar alguma outra nação: e pode-se dizer com segurança que não há, e não houve, uma nação sobre a terra, à qual essa descrição se aplique, a não ser os romanos. Os romanos sucederam aos macedônios e, portanto, naturalmente, foram os próximos a serem mencionados.” (Joseph Benson’s Commentary on the Old and New Testaments)

Após o terceiro reino, o reino dos romanos emergiu como o poder dominante, tornando-se assim o poderoso quarto reino da profecia, o qual “moeu”, “esmagou” e “triturou” todos os povos.

Daniel também descreverá o ferro como um material resistente e que não se fragmenta com facilidade, simbolizando a firmeza e unidade inquebrantável características do reino dos romanos. “O império de Roma foi firmemente estabelecido pela singular e perfeita coalizão de seus membros. As nações sujeitas, renunciando à esperança e mesmo ao desejo de independência, adotaram o perfil de cidadãos romanos; […]” (Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire)

“O Império Romano era uma civilização unida, cuja principal característica era a aceitação, absoluta e incondicional, de um único modo de vida comum a todos os que viviam dentro de suas fronteiras. Essa é uma ideia muito difícil de ser compreendida pelo homem moderno, acostumado como está a uma série de países soberanos mais ou menos nitidamente diferenciados, e cada um deles separadamente colorido, por assim dizer, por costumes diferentes, um idioma diferente e, muitas vezes, uma religião diferente. […] Agora, os homens que viviam no Império Romano consideravam a vida cívica de uma maneira totalmente diferente. Todos os antagonismos concebíveis (e eles eram violentos) eram antagonismos dentro de um Estado. Nenhuma diferenciação de Estado contra Estado era concebível ou foi tentada. Do Eufrates às Terras Altas da Escócia, do Mar do Norte ao Saara e ao Médio Nilo, tudo era um Estado”. (Hilaire Belloc, Europe and the Faith)


Parte 3: Um reino dividido

Os pés e os artelhos, parte deles de barro de oleiro e parte deles de ferro. A palavra traduzida como “barro” significa barro em seu estado endurecido, como o encontrado em vasos e tijolos de argila. Em contraste com o ferro, é um material que se desintegra facilmente e não se mantém unido. “O acréscimo de דִּי-פֶהָר, ‘do oleiro’, a חֲסַף, ‘barro’, fortalece a ideia de fraqueza e falta de poder que está implícita nesse termo. A mesma ideia resulta da combinação genitiva חֲסַף טִינָא ‘barro viscoso, cacos’, que ocorre no final do versículo; ela designa a obra acabada do oleiro (Vulg. testa), que, como caco, é capaz de ser facilmente quebrada.” (Lange Commentary on the Holy Scriptures)

Para descobrir o que esse novo elemento, o barro, representa, devemos primeiro considerar o que o profeta diz sobre o barro e os demais materiais encontrados na estátua.

  • O barro está listado entre os materiais que foram moídos (“o ferro, o cobre, o barro, a prata e o ouro”) e foram chamados de “estes reinos”. Isso mostra que o barro também representa um reino.
  • Embora os outros materiais que representam reinos sejam metálicos, isso não significa que um material não metálico, como a argila, não possa representar um reino. Daniel também mostra que a pedra, outro material não metálico, representa um reino (compare Dn 2:34-35 com Dn 2:44).
  • Com relação às características do barro que ilustram a natureza do reino que ele representa, o barro é descrito como frágil e propenso a se quebrar (versículo 42). Isso contrasta com o ferro, que é descrito como um material firme e resistente (versículo 41).

Ao juntar as informações fornecidas por Daniel, podemos ver que o barro representa um outro povo e reino — um povo fraco em poder e propenso a se fragmentar. Mesmo quando unido ao Império Romano (o ferro estava misturado ao barro), esse povo representado pelo barro não se assimilaria efetivamente a ele, conforme será indicado pelo fato de que “o ferro não se mescla ao barro” (Dn 2:43).

O povo que se encaixa na descrição dada no texto é o povo germânico.

  • O povo germânico tinha um governo fraco, em comparação com os impérios que vimos até agora. O historiador e medievalista Patrick J. Geary descreve a sociedade germânica antes de sua migração como uma sociedade marcada pela ausência de um governo forte e centralizado.4Before France and Germany: The Creation and Transformation of the Merovingian World “[…] todo o norte da Europa era ocupado por aquela grande raça germânica, da qual as nações da Europa moderna mais imediatamente derivam sua origem. […] O governo dos germânicos, enquanto eles habitavam seu próprio país, era o mais livre de que se tem registro.” (J. C. L. de Sismondi, History of the Fall of the Roman Empire: Comprising a View of the Invasion and Settlement of the Barbarians)
  • A unidade do povo germânico era facilmente quebrada, em contraste com a férrea firmeza que mantinha o Império Romano unido sob uma única mente e um único governo. “Eles [os germânicos] não tinham um governante único como o imperador romano, mas estavam divididos em muitas tribos, cada uma com seus próprios líderes.” (Ephraim Emerton, Introduction to the Middle Ages). De acordo com o historiador Patrick J. Geary, conflito dentro das tribos germânicas era a norma, os laços de parentesco eram frouxos e a unidade entre eles era facilmente quebrada. O poder se encontrava disperso entre os líderes e chefes locais, e as tribos operavam de forma mais independente do que sob uma liderança nacional unificada. De acordo com Geary, todas essas características contribuíram para a constante instabilidade que caracterizava o povo germânico. O historiador romano Tácito relata que “uma semelhança familiar permeia o todo, apesar do número deles ser tão grande […]. Seus reis não têm um poder absoluto ou ilimitado”.
  • O povo germânico foi incorporado ao Império Romano, um fato simbolizado pelos pés da estátua, os quais eram parcialmente de ferro e parcialmente de barro. “Os historiadores dos séculos II, III e IV, Dião Cássio, Herodiano, os escritores das chamadas Histórias Augustas, Eutrópio, Sexto Aurélio Vítor e Amiano Marcelino […] ocasionalmente e incidentalmente fazem menção de germânicos dentro do império e nos informam indiretamente sobre a imigração pacífica em massa de bárbaros para o território romano;” (Carlton Huntley Hayes, A. M., An Introduction to the Sources Relating to the Germanic Invasions) O historiador Bruce L. Shelley explica que, durante o século III, o Império Romano convidou tribos germânicas a se estabelecerem em suas regiões ocidentais. Os romanos também recrutaram um grande número de germânicos para servir nas forças militares do império. No final do século IV, observa Shelley, a maior parte do exército e seus generais eram compostos quase que inteiramente por indivíduos de origem germânica.
  • No entanto, o povo germânico não se assimilou efetivamente ao Império Romano, conforme indicado pelo fato de que “o ferro não se mescla ao barro” (Dn 2:43). “[…] dificilmente se pode imaginar dois povos mais diferentes do que esses que estavam em lados opostos da fronteira entre o Reno e o Danúbio.” (Ephraim Emerton, Introduction to the Middle Ages) “É claro que quando dois povos como os germânicos e os romanos entraram em contato […] e foram forçados a viver lado a lado sobre o mesmo solo, suas diferenças de costumes e tradições se manifestaram fortemente e muitas vezes deram origem a sérios problemas.” (Ephraim Emerton, Introduction to the Middle Ages)

“A atitude dos godos e dos germânicos em geral em relação ao Império foi o resultado direto da gradual germanização. Eles não o viam como um inimigo a ser derrotado, mas como uma grande instituição na qual tinham o legítimo direito de participar, visto que homens de sua própria raça já tinham uma ampla presença nela. […] Alarico não se sentia um estranho em um reino no qual os germânicos ocupavam os cargos mais altos e chegavam até mesmo a se casar com damas da casa imperial; […]” (Bury, J. B.. The Invasion of Europe by the Barbarians (p. 41).). “Muitos dos soldados que ocuparam os postos mais altos na última parte do século IV eram de origem germânica. Esse é um ponto extremamente importante. De fato, havia um processo de germanização em andamento durante aquele século, e isso constituía um grave perigo. Olhando para trás, podemos ver que os imperadores adotaram uma política liberal demais ao permitir que os germânicos ocupassem postos de supremo comando.” (Bury, J. B.. The Invasion of Europe by the Barbarians)

Assim, chegamos aos pés da estátua, os quais são feitos de ferro (romanos) e de barro (germânicos).

Será um reino dividido. O historiador Guy Halsall, especialista em Alta Idade Média europeia, descreve em seu livro Barbarian Migrations and the Roman West (376-568) como a mudança na natureza do governo imperial causou “vácuos políticos” em partes do império, especialmente nos territórios bárbaros dentro do império. De acordo com ele, esses vácuos abriram espaço para que esses poderes germânicos surgissem e remodelassem o cenário social e político do império. Os comandantes germânicos preencheram esses vácuos, assumindo os papéis políticos, sociais e militares que as autoridades romanas não eram mais capazes de manter com eficácia.

O Império Romano não conseguiu integrar o povo germânico — semelhante à incapacidade do ferro de se mesclar com o barro — e o povo germânico não se assimilou efetivamente a esse quarto reino, o que levou à formação de enclaves mais ou menos independentes dentro dele. Essa falta de integração causou divisão e levou ao “estabelecimento de ‘reinos’ praticamente independentes no território do império”. (Carlton Huntley Hayes, A. M., An Introduction to the Sources Relating to the Germanic Invasions)

A integração do povo representado pelo barro enfraqueceu a estrutura do poderoso reino de ferro. De fato, houve “um enfraquecimento geral do governo, pelo menos nas províncias ocidentais [precisamente onde essas tropas germânicas se estabeleceram]”. (Carlton Huntley Hayes, A. M., An Introduction to the Sources Relating to the Germanic Invasions)

E parte da firmeza do ferro estará nele, tudo com base no fato de que você viu o ferro mesclado com barro da lama. O historiador Guy Halsall menciona que o forte governo de imperadores como Cláudio II e Aureliano foi capaz de restabelecer parte da unidade do império. Ele destaca o reinado de Diocleciano (284-305) e de seus colegas e sucessores como um período de governo particularmente forte. Ele conclui dizendo que, embora a diversidade tenha por fim triunfado sobre a unidade política e cultural do Império Romano, esse ainda foi um período de governo forte.

Considerando o que vimos até agora, o texto bíblico agora volta nossa atenção para o povo germânico (representado pelo barro) e o povo romano (representado pelo ferro). Portanto, devemos voltar o foco de nosso estudo para esses dois povos, que inicialmente se desenvolveram e coexistiram na parte ocidental do império (Europa Ocidental).

A região oriental que antes fazia parte do Império Romano gradualmente deixou de ser verdadeiramente romana, tornando-se grega. Como o historiador Thomas E. Woods aponta, essa região passou a ser governada por autoridades que não eram de fato romanas e nunca sucumbiu ao povo germânico.5How the Catholic Church Built Western Civilization (Além disso, essa região posteriormente foi tomada pelos turcos-otomanos.)

Novamente, considerando o que vimos até agora, o texto bíblico volta nossa atenção para o povo germânico (barro) e o povo romano (ferro). Portanto, devemos voltar o foco de nosso estudo para esses dois povos, que inicialmente se desenvolveram e coexistiram na região ocidental da Europa. Esses dois povos permaneceriam no poder até que, de acordo com a profecia, o próprio Deus os destruísse (devido à maldade deles) e erguesse seu próprio reino para governar toda a terra.


Parte 4: Firme e quebradiço

Os dedos dos pés, parte deles de ferro e parte deles de barro. “A passagem da Itália e das províncias ocidentais para o domínio de reis germânicos foi realizada, como vimos, pelo assentamento de um grande número de bárbaros nos territórios conquistados. Isso tornou necessária uma divisão do solo e uma definição do status dos romanos com relação aos invasores, que eram em toda parte menos numerosos do que a população nativa.” (Arthur E. R. Boak, A History of Rome to 565 A.D.)

Até o fim, essas duas sociedades compartilhariam o poder, porque o reino seria em parte de ferro e em parte de barro.

Teodorico “governou duas raças ao mesmo tempo, romanos e godos [uma tropa germânica]”. (Excerpta Valesiana, Excerpta II 59-60) “No reino visigótico na Gália, os godos e os romanos viviam lado a lado como povos separados, cada um desfrutando de suas próprias leis, e os romanos não eram considerados súditos sem direitos contra seus conquistadores.” (Arthur E. R. Boak, A History of Rome to 565 A.D.) “Essas foram, por muitas gerações, as principais divisões dos francos [uma tropa germânica]. A população de Austrásia era quase totalmente germânica, e a de Nêustria era em grande parte românica.” (Ephraim Emerton, Introduction to the Middle Ages) “Os reis francos não hesitavam em nomear romanos para cargos importantes no governo e no exército, assim como os romanos há muito tinham o hábito de empregar os bárbaros.” (James Harvey Robinson, An Introduction to the History of Western Europe)

Parte deles de ferro. Ao longo do tempo, o povo romano foi governado por diferentes tipos de líderes: reis, cônsules, ditadores e imperadores. “Depois dos grandes imperadores, veio o grande papa. […] Somente no papado a antiga tradição romana de monarquia universal foi devidamente mantida.” (Thomas Frederick Tout, The Empire and the Papacy: 918-1273)

A Igreja Romana era uma instituição que fazia parte do governo imperial nos dias anteriores ao seu declínio. “Como cidadãos romanos, não havia nenhuma concepção em suas mentes de um governo espiritual da Igreja independente do poder imperial.” (Alexander Clarence Flick, The Rise of the Mediaeval Church and Its Influence on the Civilization of Western Europe from the First to the Thirteen Century) “De acordo com as ideias romanas, a religião e seus ministros faziam parte do Estado e, portanto, estavam sob o controle do governo. Quando Constantino tornou o cristianismo uma religião legalizada, o Estado adotou a mesma atitude em relação à nova religião que tinha em relação à antiga. O imperador assumiu o controle sobre o clero cristão, e logo prevaleceu a visão de que eles eram funcionários do Estado. Seus deveres, que a princípio eram puramente espirituais, logo foram estendidos a assuntos seculares. […] Durante as invasões dos bárbaros, as funções seculares dos bispos aumentaram grandemente.” (Oliver J. Thatcher e Edgar Holmes McNeal, A Source Book for Mediæval History)

A Europa ocidental, abandonada e deixada sem imperador, viu o líder da igreja romana assumir o papel do imperador nesse reino dividido. Ele “faria da Europa os Estados Unidos da Igreja e trataria seus maiores monarcas [monarcas germânicos] como sátrapas [governantes locais] do papado”. (Joseph McCabe, Crises in the History of the Papacy)

“E nos dias das invasões bárbaras, quando os representantes da autoridade imperial foram removidos das províncias, os bispos se tornaram os líderes da população romana em seu contato com os conquistadores bárbaros.” (Arthur E. R. Boak, A History of Rome to 565 A.D.) “Abandonados por seu senhor, os romanos se ligaram necessariamente a seus pontífices, que eram em geral romanos e mereciam tal ligação. […] Eles [os papas] reconciliaram, ou colocaram em desacordo ao seu redor, os príncipes da terra;” (Pierre Claude François Daunou, The Power of the Popes)

“O papa Gregório VII, por volta do ano mil e cinquenta, fez uso da seguinte linguagem e a proclamou como a doutrina da Igreja Romana: ‘[…] Somente ele [o papa] deve usar os emblemas da dignidade imperial; todos os príncipes devem beijar seus pés; […]'” (William Hogan, Popery! As It Was and as It Is. Also, Auricular Confession; And Popish Nunneries) O papa Inocêncio III declarou: “Cabe ao papa cuidar dos interesses do império romano, uma vez que o império [após seu declínio] deriva sua origem e sua autoridade final do papado”. (Oliver J. Thatcher e Edgar Holmes McNeal, A Source Book for Mediæval History) O Papa “Bonifácio VIII […] bradou para a multidão de peregrinos leais: ‘Eu sou César — eu sou imperador'”. (Alexander Clarence Flick, The Rise of the Mediaeval Church)

Também vimos que Daniel descreve o ferro como um material resistente e que não se fragmenta com facilidade, simbolizando a firmeza e unidade inquebrantável do reino dos romanos. Essa característica do povo romano também foi mantida pela congregação romana: “Mas o que mais nos toca observar aqui é que esse sistema de igreja, exigindo uma uniformidade mais rígida na doutrina e na organização […], manteve e propagou novamente o sentimento de um único povo romano em todo o mundo.” (James Bryce, The Holy Roman Empire) Deveria haver aceitação absoluta e incondicional de uma única crença e modo de vida por todos os súditos do bispo de Roma. Todos deveriam seguir as tradições romanas. Do continente americano ao extremo leste da Ásia, dos países nórdicos às selvas da África subsaariana e além, todos eram um povo romano, a igreja romana.

Papas podem ter disputado o trono romano entre si, conspirado uns contra os outros e até mesmo reinado simultaneamente. Mesmo assim, o sistema romano permaneceu uno, como era o caso do Império Romano antes dos papas: “Imperador pode suceder imperador, em uma série de guerras civis. Vários imperadores poderiam estar reinando juntos. O cargo de imperador poderia até mesmo ser oficial e conscientemente mantido em comissão entre quatro ou mais homens. Mas o poder do imperador era sempre um só poder, seu cargo um só cargo e o sistema do Império um só sistema”. (Hilaire Belloc, Europe and the Faith)

Parte do reino será forte. Portanto, embora os governantes germânicos tenham enfraquecido o reino, parte dele permaneceria forte devido à continuação do poder representado pelo ferro. “Eles [os clérigos do Ocidente] passaram então a assumir muitos dos deveres do governo, os quais os fracos e desordenados estados [germânicos], nos quais o Império Romano caiu, eram incapazes de desempenhar adequadamente.” (James Harvey Robinson, An Introduction to the History of Western Europe)

“A Igreja [romana] havia, de certa forma, tomado o lugar do Império Romano, mantendo os vários povos da Europa Ocidental unidos sob a liderança do papa e assumindo os poderes de governo durante o período em que os senhores feudais eram fracos demais para garantir a ordem e a justiça. Organizada como uma monarquia absoluta, a Igreja foi, em certo sentido, o Estado mais poderoso da Idade Média”. (James Harvey Robinson, An Introduction to the History of Western Europe)

Sendo o monarca forte e romano desse reino dividido, o papa também regulou o domínio europeu sobre o globo terrestre, determinando como e onde esses governantes germânicos governariam. “Os espanhóis foram os primeiros a entrar nessa empreitada [assentamentos ultramarinos]; eles reivindicaram o domínio de todo esse novo mundo da América. Logo em seguida, porém, os portugueses pediram uma parte. O papa — esse foi um dos últimos atos de Roma como dona do mundo — dividiu o novo continente entre esses dois pioneiros, dando o Brasil e todo o resto a leste de uma linha de 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde a Portugal, e todo o resto à Espanha (1494). Os portugueses, nessa época, também estavam impulsionando empreendimentos ultramarinos em direção ao sul e ao leste. Em 1497, Vasco da Gama navegou de Lisboa, contornando o Cabo, até Zanzibar e depois até Calicute, na Índia. Em 1515, havia navios portugueses em Java e nas Molucas, e os portugueses estavam estabelecendo e fortificando estações comerciais ao redor das costas do Oceano Índico. Moçambique, Goa e duas possessões menores na Índia, Macau na China e uma parte do Timor são até hoje [1922] possessões portuguesas. […] No final, os japoneses chegaram à conclusão de que os europeus eram um incômodo intolerável e que o cristianismo católico, em particular, era um mero disfarce para as intenções políticas do papa e da monarquia espanhola — já em posse das Ilhas Filipinas; […]” (H. G. Wells, A Short History of the World)

O historiador italiano Gregorio Leti fez a seguinte observação no ano de 1667: “Os papas […] aumentaram de tal forma as glórias de Roma, que não há praticamente um canto na Europa, nem um lugar na Ásia, nem um deserto na África, nem uma recôndita região na América, onde o nome do papa não tenha penetrado e onde não se fale de Roma.” (Gregorio Leti, Il nipotismo di Roma, or, The History of the Popes Nephews, translated by William Aglionby)

O sonho de Nabucodonosor tem profetizado os poderes que dominariam o mundo até o fim dos tempos, e os povos representados nos dedos de ferro e de barro não seriam exceção. Assim como fora concedido à Babilônia domínio sobre “tudo o que é habitado pelos filhos de homem” (Dn 2:38), e os outros reinos representados na estátua detiveram esse mesmo poder “sobre toda a terra” (Dn 2:39), os germânicos e os romanos também ascenderam ao poder mundial. Cada canto do globo caiu sob o domínio de poderes de origem germânica unidos ao papado, e muitas das nações modernas eram originalmente colônias europeias. Europeus migraram para outras terras, difundindo e, muitas vezes, impondo o modo de vida ocidental, e nós incorporamos suas leis, instituições, idiomas, maneiras e crenças.

“A criação do Império Britânico foi simplesmente uma parte (embora, talvez, a maior) do alastramento dos povos europeus que, durante os últimos quatro séculos, colocou o mundo inteiro sob a influência da civilização ocidental.” (Ramsay Muir, The Character of the British Empire) “No século XIX, e especialmente após a chegada do navio a vapor, o fluxo de emigração europeia para as novas terras vazias da América e da Austrália cresceu por algumas décadas na escala de uma grande migração. Assim, surgiram populações permanentes de europeus no exterior, e a cultura europeia foi transplantada para áreas muito maiores do que aquelas em que havia sido desenvolvida.” (H. G. Wells, A Short History of the World)

E uma parte será quebradiça. Como vimos, diferentemente do governo centralizado do imperador romano ou de monarcas orientais como Nabucodonosor, o “governo dos germânicos, enquanto eles habitavam seu próprio país, era o mais livre de que se tem registro.” (J. C. L. de Sismondi, History of the Fall of the Roman Empire: Comprising a View of the Invasion and Settlement of the Barbarians) “Eles [os germânicos] não tinham um governante único como o imperador romano, mas estavam divididos em muitas tribos, cada uma com seus próprios líderes” (Ephraim Emerton, Introduction to the Middle Ages)

Assim, mesmo antes de migrar para o sul e para outras terras, o povo germânico era governado de forma frouxa e seu poder estava disperso entre vários líderes e chefes locais. Essa estrutura descentralizada persistiu nos reinos germânicos que surgiram do Império Romano, onde a divisão e o poder fragmentado continuaram sendo características distintivas. “A vida militar entre o povo germânico havia produzido o feudalismo e, com ele, uma terrível anarquia. A realeza não tinha poder. A autoridade não tinha, por assim dizer, nenhum centro; era fragmentada e subdividida por toda a nação.” (P. L. Jacob, Military and religious life in the Middle Ages and at the period of the Renaissance)

“O princípio de divisão do governo, que foi praticado antes da época de Carlos Magno e endossado por ele, produziu cinco divisões do Império [germânico] dentro de trinta anos. […] Antes do final do século IX, a unidade territorial do Império de Carlos Magno foi quebrada.” (Alexander Clarence Flick, The Rise of the Mediaeval Church)

“[…] o Império [germânico] nunca foi mais do que uma teoria semi-realizada; e conquanto o mundo tivesse teoricamente um só mestre [o imperador germânico], na realidade era governado por uma multidão de pequenos chefes feudais.” (Thomas Frederick Tout, The Empire and the Papacy: 918-1273)

Até mesmo os assentamentos germânicos ultramarinos se separaram e se tornaram países independentes. “Essas novas comunidades, que traziam consigo uma civilização pronta para essas novas terras, cresceram, por assim dizer, de forma não planejada e despercebida; a administração estatal da Europa não as previu e não estava preparada com nenhuma ideia sobre como lidar com elas. Os políticos e ministros da Europa continuaram a considerá-las como estabelecimentos essencialmente expedicionários, fontes de receita, ‘possessõesʼ e ‘dependênciasʼ, muito depois de seus povos terem desenvolvido um senso aguçado de sua vida social separada. E também continuaram a tratá-los como desamparadamente sujeitos à pátria-mãe muito tempo depois de a população ter se espalhado para o interior, fora do alcance de qualquer operação punitiva eficaz vinda do mar.” (H. G. Wells, A Short History of the World)

Mesmo “o Império Britânico, o maior domínio que já existiu na história, o qual cobre um quarto da superfície da terra [1917], e no qual um quarto da população da terra está sujeito (pelo menos, na forma) ao governo de duas pequenas ilhas europeias”, tinha um governo frouxo e não manteve suas possessões ultramarinas unidas. “Como tentaremos mostrar, essa palavra [a palavra ‘império’] é realmente mal aplicada aos domínios britânicos. O caráter de seu governo e do vínculo que os mantém unidos seria muito melhor expresso por uma frase que agora está sendo amplamente usada na Grã-Bretanha — a Comunidade Britânica de Nações. É claro que, de certa forma, esse título também levanta discussão. Mas o leitor é solicitado, desde o início, a manter em mente, enquanto lê, a pergunta: ‘O título Império, ou o título Comunidade das Nações, é a descrição mais exata desse extraordinário agregado de terras e povos?’ […] [Os britânicos] tinham o hábito e o instinto de se autogovernar em seu próprio sangue e ossos. E o resultado foi que, para onde quer que fossem, levavam consigo o autogoverno. Cada colônia de colonos britânicos, desde o início, foi investida com instituições autônomas. […] Foi esse espírito independente, alimentado pelo autogoverno, que levou à revolta das colônias americanas em 1775 e à fundação dos Estados Unidos como uma nação independente. […] No novo império que ela começou a construir assim que o antigo foi perdido, era de se esperar que ela tivesse combatido timidamente esses princípios de autogoverno […]. Mas ela não fez isso; o costume de se autogovernar estava profundamente enraizado em seus filhos para que ela pudesse negar-lhes direitos de autogoverno em seus novos lares.” (Ramsay Muir, The Character of the British Empire)

“De fato, não restou nenhuma ideia política única e comum na Europa; a Europa foi totalmente entregue à divisão e à diversidade. Todos esses príncipes e repúblicas soberanos levavam adiante esquemas de engrandecimento uns contra os outros. Cada um deles adotou uma ‘política externa’ de agressão contra seus vizinhos e de alianças agressivas. Nós, europeus, ainda vivemos hoje [1922] na última fase dessa era de estados soberanos multifacetados e ainda sofremos com os ódios, as hostilidades e as suspeitas que ela gerou.” (H. G. Wells, A Short History of the World)

Após as consequências devastadoras da Primeira Guerra Mundial, um certo historiador da época concluiu seu livro com as seguintes palavras: “Podemos duvidar que, em breve, nossa raça mais do que realizará nossas mais ousadas imaginações, que alcançará a unidade e a paz, que viverá, que os filhos de nosso sangue e de nossas vidas viverão, em um mundo mais esplêndido e amável do que qualquer palácio ou jardim que conhecemos, indo de força em força em um círculo cada vez maior de aventuras e conquistas?”7H. G. Wells, A Short History of the World

Em seguida, estourou a Segunda Guerra Mundial e as nações começaram a se matar novamente.

(Precisamos entender o seguinte: As nações não permanecerão unidas. Nossa posição na imagem de Nabucodonosor é representada pelos dedos de ferro e de barro, um material que se desintegra e não se mantém unido, bem como na parte mais baixa, mundana e secularizada da estátua: os pés. Não precisamos e não podemos esperar união entre as nações; isso simplesmente não acontecerá. Nosso foco e nossa esperança devem estar unicamente nas glórias eternas do reino que o próprio Deus está prestes a erguer, e não nos poderes deste mundo.)

O Papa declarou: “Após a Segunda Guerra Mundial, tentou-se lançar as bases de uma nova era de paz. Mas, infelizmente – nós nunca aprendemos, certo? – a velha história da competição entre os grandes poderes continuou. E, na atual guerra na Ucrânia, estamos testemunhando a impotência das Organizações das Nações Unidas”.8https://press.vatican.va/content/salastampa/en/bollettino/pubblico/2022/04/06/220406a.html

“Winston Churchill, ex-oficial do exército, repórter de guerra e primeiro-ministro britânico (1940-45 e 1951-55), foi um dos primeiros a pedir a criação dos ‘Estados Unidos da Europa’. Após a Segunda Guerra Mundial, ele estava convencido de que somente uma Europa unida poderia garantir a paz. Seu objetivo era eliminar os males europeus do nacionalismo e do belicismo de uma vez por todas.”9https://european-union.europa.eu/system/files/2021-06/eu-pioneers-winston-churchill_en.pdf “Com o objetivo de acabar com os conflitos frequentes e sangrentos que culminaram na Segunda Guerra Mundial, os políticos europeus iniciaram o processo de construção do que hoje conhecemos como União Europeia.”10https://european-union.europa.eu/principles-countries-history/history-eu/1945-59_en

Apesar de seu nome, a União Europeia não se trata de um poder unificado como o Império Romano. Não se trata de uma reunificação do quarto reino. Cada país é um poder independente do outro e não há federalismo fiscal. “A oposição política generalizada à criação de qualquer coisa que se aproxime de uma burocracia executiva grande e unificada em Bruxelas acabou há muito tempo com as esperanças, para os poucos que as abrigavam, de criar um superestado europeu.” (Kelemen, R. Daniel; Tarrant, Andy (2007). “Building the Eurocracy”)


Parte 5: Mesclando-se, mas não se apegando

Com base no fato de que você viu o ferro mesclado com o barro da lama, estarão se mesclando com a semente do homem. No capítulo anterior, Daniel mencionou a “semente da realeza” (Daniel 1:3). “A palavra traduzida como ‘homem [em ‘semente de homem’]’ (אנשׁא ‘ănâshâ’) é empregada em hebraico e em caldeu para denotar homens de uma classe inferior – as ordens inferiores, o povo comum – em contraposição às classes mais elevadas e nobres, representadas pela palavra אישׁ ‘ı̂ysh. Ver Isaías 2:9; Isaías 5:15; Provérbios 8:4.” (Albert Barnes’ Notes on the Whole Bible) Os pés e os dedos de ferro estariam se mesclando com aqueles que não pertenciam ao povo e governo imperial (neste caso, os bárbaros germânicos).

“O imperador [romano] Teodósio II […] tinha sangue germânico em suas veias.” (Bury, J. B. The Invasion of Europe by the Barbarians) “Estilicão havia se casado com a sobrinha e filha adotiva de Teodósio, e havia dado suas duas filhas sucessivamente em casamento a Honório.” (Ephraim Emerton, Introduction to the Middle Ages) “Os germânicos ocupavam os cargos mais elevados e chegavam até mesmo a se casar com damas da casa imperial;” (Bury, J. B. The Invasion of Europe by the Barbarians)

Em reinos romano-germânicos, “casamento entre os dois povos era sancionado, […]”. (Arthur E. R. Boak, A History of Rome to 565 A.D.) Contrariamente à crença de que o casamento entre romanos e germânicos era proibido em alguns reinos romano-germânicos, “Fustel de Coulanges fez algumas explicações perspicazes mostrando o contrário. Depois de chamar a atenção para um grande número de casamentos que de fato ocorreram, de acordo com as fontes narrativas, entre germânicos e romanos, ele resume sua argumentação: […]” (Carlton Huntley Hayes, A. M., An Introduction to the Sources Relating to the Germanic Invasions)

Conquanto a palavra traduzida como “mesclando” possa se referir à mistura que ocorre em casamentos entre pessoas de diferentes sociedades (Esdras 9:2), ela não se limita a esse contexto.12Fontes: Keil and Delitzsch OT Commentary e Daniel: An Exegetical and Theological Exposition of Holy Scripture Volume 18 A palavra pode incluir qualquer tipo de mistura ou fusão. Como seu equivalente hebraico, a palavra também é usada para misturas culturais (Salmo 106:35; Juízes 3:5-7), alianças políticas (Isaías 36:8; Provérbios 24:21) e outras associações (Provérbios 20:19), não apenas casamentos. Todos esses usos da palavra se aplicam à mescla que ocorreu entre o povo imperial e os bárbaros germânicos.

Basicamente, o povo representado pelo ferro e o povo representado pelo barro se mesclariam, uma vez que o ferro estava mesclado com o barro.

De acordo com o historiador Bruce L. Shelley, os dois povos, o germânico e o romano, gradualmente começaram a se misturar e se fundir, tanto culturalmente quanto pelo sangue. “[…] uma nova raça de homens [o povo germânico] tomou posse das regiões que agora habitamos, […]. A mistura das duas raças [romana e germânica] não foi realizada senão depois de longos desgastes, […]. Foi, no entanto, essa mistura que fez de nós o que somos: somos herdeiros da herança dos romanos e dos bárbaros; nós incorporamos as leis, instituições, maneiras e opiniões de uma raça às da outra.” (J. C. L. de Sismondi, History of the Fall of the Roman Empire: Comprising a View of the Invasion and Settlement of the Barbarians)

“A civilização da Idade Média foi, em sua maior parte, o resultado da união de elementos romanos e germânicos. Essa união foi produzida pela invasão do império romano pelas tribos de sangue germânico que se encontravam ao longo e além da fronteira do império.” (Oliver J. Thatcher e Edgar Holmes McNeal, A Source Book for Mediæval History) Essa união de elementos romanos e germânicos lançou as bases do mundo moderno. Em seu livro Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental, o historiador Thomas E. Woods reconhece não apenas a Igreja Romana, mas também o povo germânico como uma influência formadora dessa civilização.

E como vimos, o termo traduzido como “mesclar” também se aplica a alianças políticas, como a aliança política na qual a igreja romana (ferro) se mesclou com o poder civil germânico (barro). “Essa aliança entre o representante mais poderoso do mundo germânico e o líder da cristandade romana no Ocidente foi uma das coalizões mais impactantes da história da Europa. […] Ela criou uma nova organização política na Europa Ocidental com o papa e o imperador germânico no comando.” (Alexander Clarence Flick, The Rise of the Mediaeval Church)

“A história de toda a Europa cristã está, de certa forma, entrelaçada com o Sacro Império Romano. Embora o Império não fosse sacro [santo] nem romano, mas totalmente secular e teutônico [outra palavra para ‘germânico’], […].” (Madison Grant, The passing of the great race; or, The racial basis of European history) “[…] começa a ideia do ‘Sacro Império Romano’, que afetou tão profundamente toda a vida secular e religiosa da Idade Média. […] o novo império representava uma união estreita e consciente da Igreja e do Estado para a vantagem de ambos. Começou com a ideia de que o imperador [germânico] deveria ser o protetor e supervisor da Igreja: por um trágico desdobramento, acabou fazendo do Papa o supervisor do Estado”. (Charles Oman, The Dark Ages, Period 1, 476-918)

E não estarão apegando este a este, assim como o ferro não se mescla ao barro. Como vimos, o povo germânico e o povo romano frequentemente tinham muitas desavenças entre si. “[…] dificilmente se pode imaginar dois povos mais diferentes do que esses que estavam em lados opostos da fronteira entre o Reno e o Danúbio.” (Ephraim Emerton, Introduction to the Middle Ages) “É claro que quando dois povos como os germânicos e os romanos entraram em contato […] e foram forçados a viver lado a lado sobre o mesmo solo, suas diferenças de costumes e tradições se manifestaram fortemente e muitas vezes deram origem a sérios problemas.” (Ephraim Emerton, Introduction to the Middle Ages)

Ao longo dos séculos, no relacionamento do Papa com os governantes germânicos, essa tensão persistiu. “Descobriremos que, em vez de se tornarem temidos em casa e construírem um grande estado, os imperadores germânicos [barro] desperdiçaram sua força em um longo conflito com os papas [ferro], os quais, no final, se mostraram incomparavelmente mais fortes e por fim reduziram o Império [germânico] a uma mera sombra.” (James Harvey Robinson, An Introduction to the History of Western Europe)

O papa “formulou e apresentou a reivindicação de que o papa era o senhor do imperador [germânico] e o verdadeiro governante do mundo, mesmo em questões temporais. Antes de 1073, havia atritos ocasionais entre o império [germânico] e o papado, mas isso não se transformou em um conflito real e definitivo pela supremacia mundial até Gregório VII se tornar papa”. (Oliver J. Thatcher e Edgar Holmes McNeal, A Source Book for Mediæval History) E papas foram depostos e colocados no poder, assim como os imperadores romanos antes deles nesse reino dividido de ferro e barro: “Os bárbaros vagavam para lá e para cá a seu bel-prazer, e as tropas germânicas a serviço do Império [Romano] se entretinham criando e derrubando imperadores fantoches.” (James Harvey Robinson, An Introduction to the History of Western Europe)

A confederação germânica que por fim ficou conhecida como “Sacro Império Romano” foi originalmente chamada de “Império Romano”. O termo sacrum (“santo”) foi acrescentado em 1157 pelo imperador germânico Frederico I, que buscava governar seu império sem a interferência do líder romano.13Raikar, S. Pai , Barraclough, . Geoffrey and Sullivan, . Richard E.. “Holy Roman emperor.” Encyclopedia Britannica, December 19, 2023. https://www.britannica.com/topic/Holy-Roman-emperor. Além disso, as reivindicações imperiais desse governante germânico não agradaram ao pontífice romano: “Nós excomungamos e anatematizamos Frederico, o assim chamado imperador, porque ele incitou rebelião em Roma contra a igreja romana, […] Nós o excomungamos e anatematizamos porque ele prejudicou a recuperação da Terra Santa e a restauração do império romano. […] Absolvemos todos os seus súditos de seus juramentos de fidelidade a ele, proibindo-os de mostrar-lhe fidelidade enquanto ele estiver sob excomunhão.” (Oliver J. Thatcher e Edgar Holmes McNeal, A Source Book for Mediæval History)

Em suma, “o grande conflito entre papas e imperadores [germânicos] […] foi o evento central da Idade Média”. (Thomas Frederick Tout, The Empire and the Papacy: 918-1273)

Após a Idade Média, a falta de coesão entre o ferro e o barro naturalmente persistiu. Diferentes países germânicos adotaram diferentes formas de cristianismo protestante em oposição ao cristianismo romano. “[…] havia muitos governantes que viam vantagem em romper os laços religiosos entre seu povo e Roma. Eles buscaram se tornar pessoalmente os líderes de uma religião mais nacionalizada.” (H. G. Wells, A Short History of the World) “Em geral, as regiões (com exceção da Inglaterra) que faziam parte do império romano permaneceram católicas em suas crenças. Por outro lado, o norte da Alemanha, uma parte da Suíça, Inglaterra, Escócia e os países escandinavos, mais cedo ou mais tarde, rejeitaram a liderança do papa e muitas das instituições e doutrinas da Igreja medieval e organizaram novas instituições religiosas.” (James Harvey Robinson, An Introduction to the History of Western Europe)

“Toda aquela parte do Ocidente que havia rejeitado a autoridade da Sede de Roma começou a parecer uma região territorial separada, permanentemente dividida do resto; toda aquela parte da Europa que havia conservado a autoridade da Sede de Roma começou a parecer outra região territorial. A linha de separação entre os dois estava começando a se definir como uma linha geográfica e quase correspondia à linha que, séculos antes, havia dividido o mundo romano e civilizado daquele dos bárbaros.” (Hilaire Belloc, The French Revolution)

Como vimos, o papa havia determinado qual parte do globo terrestre pertenceria à Espanha e qual pertenceria a Portugal. Entretanto, algumas das outras forças germânicas começaram a reivindicar territórios para si sem a autorização do Papa. “As nações excluídas da América pelo acordo papal deram pouca importância aos direitos da Espanha e de Portugal. Os ingleses, os dinamarqueses e suecos e, em breve, os holandeses, logo estavam reivindicando territórios na América do Norte e nas Índias Ocidentais, e sua Mais Católica Majestade da França deu tanta importância ao acordo papal quanto qualquer protestante. As guerras da Europa se estenderam a essas reivindicações e possessões.” (H. G. Wells, A Short History of the World)

E os desentendimentos entre o Papa e os poderes germânicos persistiram: “O último e mais importante dos aspectos que a Revolução Francesa apresenta a um leitor estrangeiro, e em particular a um leitor inglês, é o antagonismo que surgiu entre ela e a Igreja. […] Era certamente verdade que o catolicismo havia sido, por tantos séculos, vinculado à estrutura do Estado que o Parlamento deveria, portanto, fazer algo com a Igreja no acordo geral da nação: ele não poderia simplesmente deixar a Igreja de lado. […] O clero ortodoxo era considerado em toda parte, nessa época, como o inimigo típico do movimento revolucionário; eles próprios consideravam o movimento revolucionário, nessa época, como sendo principalmente uma tentativa de destruir a Igreja Católica.” (Hilaire Belloc, The French Revolution) “E toda a vasta propriedade da igreja foi confiscada e administrada pelo estado; […]. além disso, a escolha de padres e bispos foi feita de forma eletiva, o que atingiu a própria raiz da ideia da Igreja Romana, que centralizava tudo no papa e na qual toda a autoridade vinha de cima para baixo. Praticamente, a Assembleia Nacional queria, em um só golpe, tornar a igreja na França protestante, em organização, se não em doutrina. Em toda parte havia disputas e conflitos entre os padres estatais criados pela Assembleia Nacional e os padres recalcitrantes (não juramentados) que eram leais a Roma.” (H. G. Wells, A Short History of the World)

“Por algum tempo, a investida francesa em direção à Itália ficou suspensa, e foi somente em 1796 que um novo general, Napoleão Bonaparte, liderou os exércitos republicanos esfarrapados e famintos em triunfo pelo Piemonte até Mântua e Verona. […] Para a infelicidade da França e do mundo, surgiu um homem que encarnou em sua forma mais intensa esse egoísmo nacional dos franceses. Ele deu àquele país dez anos de glória e a humilhação de uma derrota final. Esse era o mesmo Napoleão Bonaparte que havia conduzido os exércitos do Diretório à vitória na Itália. […] Sua maior imaginação política o levou a uma tentativa tardia e ignóbil de restaurar o Império Ocidental. Ele tentou destruir os restos do antigo Sacro Império Romano, com a intenção de substituí-lo por um novo centrado em Paris. […] ele se tornou imperador da França em 1804, imitando diretamente Carlos Magno. Ele foi coroado pelo papa em Paris, tirando a coroa do papa e colocando-a em sua própria cabeça […].” (H. G. Wells, A Short History of the World)

“A queda do ‘império’ de Napoleão III e o estabelecimento do novo Império Alemão direcionaram as esperanças e os temores dos homens para a ideia de uma Europa consolidada sob os cuidados da Alemanha. Durante trinta e seis anos de inquieta paz, as forças políticas da Europa se concentraram nessa possibilidade.” (H. G. Wells, A Short History of the World) E o ferro e o barro continuaram a não se apegar: “Naquela época, todas as outras questões foram deixadas de lado pelo grande conflito com a Igreja Católica Romana, no qual o governo [alemão] havia embarcado. Olhando agora para trás, ainda é difícil julgar ou mesmo entender as causas que levaram a esse conflito. Ambos os lados alegam que estavam agindo em legítima defesa. […]. Ele [Bismarck], no entanto, insistiu que a luta não era religiosa, mas política; ele não foi movido por animosidade protestante contra a Igreja Católica, mas por seu receio de que, na organização da hierarquia romana, pudesse surgir um poder dentro do Império que fosse hostil ao Estado. […] Ao empreender essa luta contra a Igreja, ele tinha dois inimigos para enfrentar: de um lado, o Papa e o governo da Igreja; do outro, a população católica da Alemanha. Ele tentou chegar a um acordo com o Papa e separar os dois; na verdade, parecia que o verdadeiro inimigo a ser combatido não era o sacerdócio estrangeiro, mas a democracia católica na Alemanha. Todos os esforços de Bismarck para separar os dois e obter a ajuda do Papa contra o partido do Centro foram infrutíferos; por alguns anos, toda a comunicação oficial entre o governo alemão e a Sé Papal foi quebrada”. (James Wycliffe Headlam, Bismarck and the Foundation of the German Empire)

Quando Adolf Hitler subiu ao poder em 1933, o papa inicialmente viu potencial no novo líder alemão, especialmente por causa da forte posição anticomunista de Hitler.14O propósito de mencionarmos esse período histórico e sua conexão com a congregação romana é continuar mostrando como o papa usou seu poder para fortalecer certas autoridades civis e os conflitos que surgiram dessa relação. Não afirmamos que o papa e seus súditos apoiaram as políticas raciais nazistas. De acordo com o historiador David I. Kertzer, Hitler fez uma série de gestos conciliatórios e prometeu garantir um lugar privilegiado para a igreja romana na sociedade alemã a fim de obter seu apoio. Hitler sabia que o apoio do papa fortaleceria sua credibilidade tanto interna quanto internacionalmente. Essas garantias convenceram os bispos romanos da Alemanha a apoiar o novo governo, e esse entendimento foi formalmente solidificado com a assinatura de uma concordata entre a Alemanha e a Igreja Romana em 1933. “Não me parece possível que o Sr. Hitler tenha esquecido que, apenas sete meses após sua chegada ao poder, quando a desconfiança e a hostilidade o cercavam interna e externamente, a Santa Sé estendeu a mão para ele, contribuindo com sua grande autoridade espiritual para aumentar a fé nele e fortalecer seu prestígio.”15Kertzer, David I. The Pope at War: The Secret History of Pius XII, Mussolini, and Hitler No entanto, eles não se apegaram um ao outro. Hitler logo começou a perseguir os católicos romanos e a restringir as atividades da Igreja Romana a atividades puramente religiosas, o que levou o papa a se opor a ele.

Em 2009, o Papa Bento XVI enfatizou que há uma necessidade urgente de “uma verdadeira autoridade política mundial”, ecoando os sentimentos de seu antecessor, o Papa João XXIII (Encyclical Letter Caritas in Veritate, section 67). Em 2020, o Papa Francisco afirmou ainda que essa autoridade mundial deveria, pelo menos, promover organizações globais mais eficazes (Encyclical Letter Fratelli Tutti, section 172), mostrando que o clamor pela existência de uma autoridade mundial continua sendo um tema consistente entre os papas recentes.

Historicamente, a Igreja Romana tem se fundido com os poderes civis e, nos bastidores, o papado continua sendo uma força poderosa no cenário global. Como veremos, o livro de Apocalipse descreve uma união final entre um certo poder de origem germânica e o monarca romano que ocorrerá pouco antes do retorno de Jesus à terra. Embora esses dois poderes (ferro e barro) não se apeguem um ao outro — um sendo majoritariamente protestante e fundado sobre princípios protestantes e o outro católico romano — eles se mesclarão. A igreja romana se mesclará com a América Anglo-Saxônica (os EUA, mais especificamente), e a última compelirá todas as nações da terra a obedecer ao monarca da congregação romana, o Papa.

Exploraremos o desenvolvimento dessa união em mais detalhes ao longo desta série, seguindo o que dizem as profecias bíblicas. Esse ponto é mencionado antecipadamente para mostrar que, até o tempo do fim, esses dois poderes discordantes que governariam o mundo permaneceriam no poder e continuariam a se misturar um com o outro. O conhecimento dessa união final entre esses dois poderes é de grande importância para a humanidade, e seu significado se tornará claro à medida que avançarmos nesta série.

Quando estes forem os reis. Isto é, durante a vez deles de reinar (lembre-se que Deus vem mudando tempos e períodos, removendo reis e erguendo reis [Dn 2:21]).

Neste ponto da profecia, os reis anteriores (ouro, prata e cobre) já deixaram de ser governantes do mundo. Deus removeu o cobre do poder e, no lugar dele, ergueu o ferro, o qual posteriormente passou a dividir o poder com o barro.

Este versículo fala que o reino de Deus será erguido em um momento em que mais de um rei se encontra no poder (“nos dias deles”, “quando estes forem os reis”). Ferro e barro são os únicos reis que compartilham o poder e governam ao mesmo tempo. Eles são os únicos que coexistem como detentores do poder. Logo, seria nos dias do ferro e do barro que Deus ergueria um reino que jamais será destruído.

E, nos dias deles, quando estes forem os reis, o Deus do céu fará erguer-se um reino que, por eras, não será destruído. Esta é a época em que nos encontramos, desde o declínio do Império Romano até os dias atuais. Portanto, agora não há nada entre nós e o erguimento do reino que jamais será destruído. Daniel fez a interpretação sobre quando o reino de Deus seria erguido com base no fato de que a pedra, representando o reino de Deus, primeiro atingiu a estátua em seus pés de ferro e barro. É somente após atingir os pés e terminar o processo de moagem do ferro e do barro que a pedra começa a destruir as demais partes da estátua (veja os versículos 34 e 35).

Deus não destruiria esses reinos até que o barro entrasse em cena — até que o povo germânico começasse a compartilhar o poder com os romanos, misturando-se e tendo conflitos com eles. O restante da profecia tinha de ser cumprido. Era necessário que os dias do ferro e do barro, quando estes seriam os reis, chegasse.

E chegamos à parte mais baixa e terrena da estátua: os pés. Roma não se tornou uma igreja; em vez disso, uma igreja se tornou Roma. Infelizmente, a igreja romana desviou-se dos ensinamentos e do exemplo de Jesus, envolvendo-se em guerras e conflitos pela supremacia, controle e poderio terreno. “O próspero mundanismo da nova Europa infecta uma imensa proporção do clero: a guerra, o luxo e a ostentação acarretam um vasto gasto, e os clérigos e leigos mais ponderados deploram a crescente venda, pelos papas, de cargos sagrados e privilégios espirituais. […] O papado é ferozmente criticado em toda a Europa, e o ressentimento de seu caráter moral leva a uma discussão sobre as bases de seu poder.” (Joseph McCabe, Crises in the History of the Papacy)

Mas a iniquidade desses reis ainda não está cheia.

Os atos finais desses reis foram profetizados, como veremos no livro de Apocalipse. Em um futuro próximo, o Papa e as nações da terra encherão sua medida de iniquidade, e então chegará o momento do rei Jesus assumir o reinado.

O dia exato em que Deus estabelecerá seu próprio reino, porém, não nos foi revelado e não nos cabe saber: “Mas quanto aos tempos e aos períodos, irmãos, não necessitais de que eu vos escreva. Porque vós mesmos sabeis perfeitamente que o dia do Senhor virá como um ladrão na noite.” (1 Tessalonicenses 5:1-2) E Jesus nos aconselha: “E olhai por vós mesmos, para que não aconteça que os vossos corações se carreguem de glutonaria, de embriaguez, e dos cuidados da vida, e venha sobre vós de improviso aquele dia. Porque virá como um laço sobre todos os que habitam na face de toda a terra.” (Lucas 21:34-35)

E a sua soberania não será deixada para outro povo. A soberania do reino não será deixada para outro povo, pois a nação que serve a Deus permanecerá para sempre e jamais será destruída (Isaías 9:12). “Agora, se vocês obedecerem diligentemente a Jeová, seu Deus, tendo o cuidado de cumprir todos os seus mandamentos que hoje lhes ordeno, Jeová, seu Deus, os exaltará sobre todas as nações da terra.” (Deuteronômio 28:1) “A retidão exalta um povo, […]” (Provérbios 14:34)

O fato de que a soberania desse reino permanecerá perpetuamente nas mãos do mesmo povo, o povo de Deus, torna esse reino totalmente diferente de todos os seus predecessores. “não (…) deixado para outros povos — como os caldeus foram forçados a deixar seu reino para os medo-persas, e estes para os gregos, e estes para os romanos (Mq 4:7; Lu 1:32, 33).” (Jamieson-Fausset-Brown Bible Commentary)

O fato de que os outros reinos serão destruídos não significa que todo indivíduo dessas nações será destruído com eles. “Deus não mostra favoritismo, mas aceita de todas as nações aquele que o teme e faz o que é certo.” (Atos 10:34-35) Todos aqueles que quiserem deixar o caminho da rebelião e se tornar cidadãos do reino de Deus serão recebidos de braços abertos por Deus, e ele perdoará toda rebelião. Ele sabe os planos que tem para nós, planos para o nosso bem e não para o nosso mal, para nos dar um futuro e uma esperança. Portanto, saia do meio deles, e seja você separado, e não toque no que é impuro, e ele o receberá. O Deus do céu será o seu Deus, e você será unido ao seu povo santo.

É somente aqueles que persistirem na rebelião contra a autoridade de Deus que serão destruídos — “porque a nação e o reino que não te servirem perecerão; sim, essas nações serão totalmente destruídas”. (Isaías 9:12)

Ele moerá e dará fim a todos estes reinos. Nesse versículo, afirma-se que o reino de Deus moerá os reinos representados na estátua e dará fim a eles. No sonho, é a pedra que realiza essas ações. Portanto, a pedra representa o reino de Deus.

Esse versículo também nos fornece evidências adicionais sobre como esse reino de Deus destruirá os reinos que vimos e quando ele será estabelecido:

  • A palavra “moerá” implica o uso de força bruta e violência contra os outros reinos. “A linguagem aqui parece implicar alguma ação violenta; alguma força positiva de trituração; algo semelhante ao que ocorre em conquistas quando nações são subjugadas. Não parece que o reino aqui representado deveria abrir caminho por meio de conquistas, da mesma forma que os outros reinos, em vez de por uma influência silenciosa e pacífica?” (Albert Barnes’ Notes on the Whole Bible) Portanto, Deus ainda não deu início à destruição desses reinos.
  • A pedra — que não estava em mãos — foi movida para “martelar” os pés de ferro e argila de maneira sobrenatural: sem mãos. As pancadas foram desferidas pela ação direta de um ser divino. Isso demonstra que esse reino destrói os outros sem qualquer envolvimento de nossa parte.
  • Com o estabelecimento do reino de Deus, todos os reinos do mundo serão destruídos e extintos — “e não se achou vestígio algum deles” (Dn 2:35). Esses reinos ainda existem, o que significa que o reino de Deus ainda não foi estabelecido.
  • No relato de Daniel, a pedra se torna uma montanha somente depois de ter transformado a estátua em pó. É somente após a extinção desses reinos que a pedra se torna uma montanha, não antes. Enquanto está destruindo os outros reinos, ela continua sendo uma pedra, sem mudar de tamanho. Portanto, o reino de Deus se expandiria sobre a terra somente após concluir a destruição dos outros reinos.

Ao considerar todas essas informações, podemos ver que esse reino eterno ainda não foi erguido, mas que esse erguimento é um evento que ainda está por acontecer.

E ele é o que permanecerá erguido pelas eras. “O ‘ele’ é enfático.” (Cambridge Bible for Schools and Colleges) Os outros reinos seriam transitórios, mas esse é o reino que permanecerá para sempre. Não haverá mais ascensão ou queda de reis, porque Aquele que se assentará no trono desse reino eterno é íntegro. De fato, “um trono é firmado pela retidão” (Provérbios 16:12).

O rei Jesus permaneceu fiel a Deus em meio às mais terríveis provas e tentações. Neste mundo rebelde e corrupto, Jesus não foi comprado nem vendido; Jesus é, nas partes mais profundas de sua alma, verdadeiro e honesto; Jesus não temia chamar o pecado pelo nome devido; sua consciência era tão fiel ao dever quanto a agulha o é à vara; Jesus defendeu o que era certo mesmo que, por isso, o mundo se enfurecesse contra ele e os governantes da terra se reunissem contra ele e seu Deus e Pai. “Eis aqui o meu Servo”, declarou o Deus do céu, “a quem apoio; o meu escolhido, em quem me agrado.” (Mateus 12:18)

E Jesus entregou sua vida pela humanidade, e ele foi ressuscitado por Deus, e ele ascendeu aos mais altos céus, onde em breve receberá de Deus o reino. Nos dias do rei de ferro e do rei de barro — em nossos dias — ele retornará de forma repentina e gloriosa, com toda a sua autoridade real, e destruirá os malignos e rebeldes reinos da terra.

Sim, ao seu messias Jesus de Nazaré, o Deus do céu entregará o reino, o poder, a força e a glória; e tudo o que é habitado por filhos de homem, animais do campo, pássaros do céu e peixes do mar, ele entregará em suas mãos e fará com que ele governe sobre todos eles. Com amor e bondade, Jesus pastoreará todos os habitantes da terra, honrando o Deus do céu e trabalhando para o bem de todos eles. Sob seu governo, eles enfim habitarão em paz e segurança, e ele enxugará de seus olhos toda lágrima. Por isso o seu reinado jamais terá fim, e isso será um testemunho perpétuo de que “amor e verdade preservam o rei, e com amor mantém ele o seu trono”. (Provérbios 20:28)

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Bibliografia

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Carlton Huntley Hayes, A. M., An Introduction to the Sources Relating to the Germanic Invasions

Patrick J. Geary, Before France and Germany: The Creation and Transformation of the Merovingian World

Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire

J. C. L. de Sismondi, History of the Fall of the Roman Empire: Comprising a View of the Invasion and Settlement of the Barbarians

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J.B. Bury, The Invasion of Europe by the Barbarians

J.B. Bury, A History of Greece

John Hirst, The Shortest History of Europe

Guy Halsall, Barbarian Migrations and the Roman West, 376–568

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Hilaire Belloc, Europe and the Faith

Ephraim Emerton, Introduction to the Middle Ages

James Harvey Robinson, An Introduction to the History of Western Europe

Alexander Clarence Flick, The Rise of the Mediaeval Church and Its Influence on the Civilization of Western Europe from the First to the Thirteen Century

Oliver J. Thatcher and Edgar Holmes McNeal, A Source Book for Mediæval History

Thomas Frederick Tout, The Empire and the Papacy: 918-1273

Pierre Claude François Daunou, The Power of the Popes

Joseph McCabe, Crises in the History of the Papacy

William Hogan, Popery! As It Was and as It Is. Also, Auricular Confession; And Popish Nunneries

James Bryce, The Holy Roman Empire

H. G. Wells, A Short History of the World

Gregorio Leti, Il nipotismo di Roma, or, The History of the Popes Nephews, translated by William Aglionby

P. L. Jacob, Military and religious life in the Middle Ages and at the period of the Renaissance

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Kertzer, David I. The Pope at War: The Secret History of Pius XII, Mussolini, and Hitler

Charles Oman, The Dark Ages, Period 1, 476-918

Hilaire Belloc, The French Revolution

James Wycliffe Headlam, Bismarck and the Foundation of the German Empire

Cite este estudo

RODRIGUEZ, Peter. Luz na Babilônia: Um comentário sobre Daniel (capítulo 2). The Bloodstained Banner, 12 ago. 2024. Disponível em: https://pt.thebloodstainedbanner.org/o-livro-de-daniel-capitulo-2/. Acesso em: dia mês ano.

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Perguntas e respostas

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Quais são os reinos do sonho de Nabucodonosor?

Os materiais que compõem a estátua são identificados por Daniel como reinos (Dn 2:39, 44-45), e a pedra está em paralelo com o reino divino (Dn 2:44-45). Sabendo dessas coisas, e seguindo a sequência profética e a cronologia histórica, os reinos retratados em Daniel 2 são:

  • O reino dos babilônios (ouro)
  • O reino dos medo-persas (prata)
  • O reino dos macedônios (cobre)
  • O reino dos romanos (ferro)
  • O reino do povo germânico (argila)
  • O reino de Deus (pedra).

O que representa a pedra simbólica que substitui a estátua em Daniel 2?

É dito que o reino de Deus moerá os reinos representados na estátua e acabará com eles. No sonho, é a pedra que realiza essas ações. Portanto, a pedra representa o reino de Deus.

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